Modus Operandi da Escrita

Escrever é uma atividade física e não apenas mental. A forma como executamos a tarefa altera o resultado

Gabriel Pardal
3 min readAug 12, 2023

Esses dias assisti pela enésima vez um vídeo de 26 minutos do cartunista Saul Steinberg falando sobre sua rotina de trabalho:

“De manhã eu me levanto e vou trabalhar. É necessário trabalhar por algumas horas. Desenhar é meu jeito de explicar à mim mesmo o que está acontecendo na minha mente. Geralmente começo com uma ideia, depois é que vem a vontade. Tenho tudo olhando para mim — papel, tinta, pincel — e algumas vezes começo desenhando no papel uma mão com uma caneta fazendo um desenho. Isso me dá tempo para pensar que desenho essa caneta está fazendo”.

O comentário de Steinberg me fez pensar que quando um artista explica o seu processo, parece sempre fácil e fascinante — inclusive para ele — , já quando ele explica o seu trabalho, parece complicado e tortuoso.

“Nesse momento estou tirando de mim a responsabilidade sobre o desenho. Eu penso que não sou eu que quero fazer esse desenho mas sim a mão que estou desenhando que quer. Dessa forma me dou a liberdade — eu posso sempre pôr a culpa na mão desenhada.”

O que acontece é que escrever é uma atividade física e não apenas mental. A forma como executamos a tarefa altera o resultado. Escolher entre escrever à mão ou no computador vai acabar produzindo resultados diferentes. No computador você pode apagar a frase que foi digitada no exato momento do erro, enquanto que as palavras rabiscadas de caneta no papel permanecem ali, e temos que avançar mesmo achando que não está bom.

Segundo uma pesquisa, a escrita manual “demanda mais esforço e concentração do cérebro, favorecendo o processo de aprendizagem.” Como os tempos atuais exigem agilidade e dinamismo, é muito raro encontrar alguém que não escreva no teclado (algumas vezes pelo celular mesmo). Geralmente as pessoas usam cadernos para anotações e o computador para textos mais longos. O termo transcription fluency quer dizer que “quando seus dedos não podem se mover tão rápido quanto seus pensamentos, suas ideias sofrem”, ou seja, quanto mais rápido se escreve, melhor o texto fica.

Discordo um pouco dessa afirmação. É verdade que a escrita manual demanda mais esforço e concentração, mas escrever devagar pode ser ótimo à medida em que forçar nosso cérebro a pensar mais lentamente pode gerar ótimos resultados. Truman Capote escrevia sempre à mão e deitado no sofá. J. K. Rowling escreveu o primeiro rascunho de Harry Potter inteiramente em um caderno durante viagens de trem. E a escritora Lynda Barry escreveu os primeiros rascunhos de seus livros muito lentamente com um pincel.

Eu gosto de alternar os processos. Ter um computador com internet às vezes atrapalha, por isso gosto de começar uma ideia escrevendo em cadernos. Posso passar muitos minutos em páginas e páginas sem me distrair com e-mails ou notícias ou memes. Apenas uma folha em branco e um lápis ou caneta. Na hora de transcrever pro computador, aproveito para fazer a primeira revisão do texto.

Foi através da escrita em cadernos que comecei a rabiscar uns desenhos. Entre uma pausa e outra para pensar, ou em momentos sem ideias, desenhava algumas coisas. Se não fosse por esse processo, provavelmente esse perfil no Instagram nunca teria existido.

Mais importante que isso é, seja qual for o meio escolhido, é importante trabalhar todos os dias. Mesmo que não saia bom, que não seja o imaginado, pode-se sempre jogar a responsabilidade em outra coisa, como a mão de Steinberg.

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Gabriel Pardal

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/